quarta-feira, 22 de fevereiro de 2006


PRELÚDIO AO HOMEM DE PALHA
vai-te antes que deus erga os olhos invejosos
e alcance a ti e aos teus
sonhos de espantalho.

vai-te antes que os rios da floresta descubram
que é das tuas margens que brotam
as brincadeiras de roda e as palavras azuis.

[a celebração da poesia e o júbilo da loucura;
a fidelidade à terra e aos presságios da chuva]

vai-te em silêncio que é pra não despertar
a ira secreta dos anjos sem asas
essas cobaias que não puderam sorrir nem amar.

vai-te e não olha pra trás
porque nada há para ser visto
porque tudo vai ficar no seu devido lugar.

[tudo vai estar como sempre esteve;
tudo sobreviverá na mais perfeita apatia]

vai-te e leva contigo tuas estrelas
que com os vaga-lumes aprenderam a brilhar
e com os dentes-de-leão a se esconder da ventania.

vai-te e deixa comigo essa lua de isopor pendurada no céu
e um candeeiro cheio de querosene e de preces
pra quando a próxima noite despertar amortalhada

[na paródia das vidas vazias e arrastadas,
pouco importa aonde pretendemos chegar]

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

Ghenadie Sontu


Por demais inumano
Sangro por não saber calar
E amanheço menos de mim
Dia após dia
Estação após estação
Como quem não sabe
Onde jaz a própria vida
Onde ressoam as raízes da alma
Onde sonham as formigas verdes
Escuta
Sou espantalho singrando lamúrias
Sou espantalho guardando cantigas
Sou espantalho fingindo poesia
Sou espantalho vestido de restos
Tristonho espantalho
Curvo e ensimesmado
Pois há pássaros noturnos
Repousando em meus braços
E eu não os sei aninhar.

domingo, 12 de fevereiro de 2006

desconheço a autoria da ilustração


a alma explode

[já é tarde, o sol diluindo-se em estrelas]

estilhaços de ti naquilo que fica

[diz-me como sorrir, eu preciso]

a solidão revisitada

[sob o céu, sangra o espantalho]

domingo, 5 de fevereiro de 2006


As letras que me habitam de você têm vida.

As letras que me invadem de você têm cores.

As letras que me afastam de você têm esqueleto.

As letras que me transbordam de você têm girassóis.


Minhas letras miúdas feitas de chuva.

Quando tocam o jardim,

horizonte.

Quando lambem o mar,

sussurro.

Quando desnudam o tempo,

eternidade.


Minhas letras silentes feitas de sombras.

Nas fotos espalhadas pela cama,

memórias.

Nos batimentos incontidos do coração,

sonhos.

Nas brincadeiras no meio da rua,

encantamento.

Nos teus loucos olhos castanhos,
amor.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2006

Outra vez digo o teu nome

estou sozinho

e nada ressoa

pelas sombras do meu entardecer.


Preciso dizê-lo

teu nome

sete mil vezes

e outras tantas mais.


Sem crer

ou alimentar

sem respirar

ou fraquejar.


Preciso repetir

preciso estrangular

escrever em letras de giz

e fazer poesia.


Preciso extirpá-lo
dia após dia

e pra sempre
maldizê-lo.

Que é pra não deixar
nada do que sinto

outra vez
selar meu abandono.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2006

a cigarra emudece sobre o caule da árvore
numa sangria de sons
na tarde que some
ao longo do horizonte
a tocar a pele do rio
*
desoladas,
minhas frases descansam
longe do sol
pouco antes das estrelas
mancharem o silêncio
que meus ouvidos
descobrem
assustados
quando chega o fim